Certa vez li um livro sobre história de uma escritora (ou escritor, vai saber) que publicou um livro feito como quem borda segredos: artesanal, bonito, cheio daquela honestidade humana que arde na ponta do dedo quando a gente escreve o que realmente sente.
O livro era uma joia pra autora… mas pro mundo foi só mais um objeto decorativo na estante dos parentes.Alguns compraram por educação. Outros deram de presente pra si mesmos e usaram como peso de papel.
E ninguém leu uma vírgula.
A autora às vezes se pegava pensando quantas almas de fato cruzaram aquelas páginas. Duas? Três? Zero?
Mas ela tinha certeza: quando a pessoa certa lesse aquele livro, ele iria explodir.
Talvez depois da morte dela, claro, porque escritor bom só vira lenda quando já virou pó.
Aí, num dia de capricho cósmico, ela fez um gesto tão absurdo que só poderia ter saído de um romance maluco:
foi até a biblioteca da cidadezinha, achou o exemplar que tinha doado, abriu o livro e colocou lá dentro um cheque.
Não um cheque qualquer. Um cheque de muito dinheiro.
Voltou pra casa rindo sozinha, imaginando a cara da pessoa que encontraria aquilo.
Talvez um pai atolado em dívidas.
Talvez uma mãe prestes a ser despejada.
Talvez alguém que só precisava de um milagre embrulhado em papel timbrado.
E claro: a pessoa, depois do susto, talvez até lesse o livro.
Talvez reconhecesse a assinatura.
Talvez entendesse que havia ali mais do que um golpe de sorte: havia uma história esperando pra ser lida.
A autora, marota, voltava de tempos em tempos à biblioteca.
Não pra pegar o cheque de volta, mas pra ver se ele ainda estava lá.
E aproveitava pra puxar o livro um tico pra fora da prateleira.
Deixar ali, na vitrine do acaso, pronto pro sortudo.
O tempo passou.
Trinta anos.
A escritora se mudou, envelheceu, tentou divulgar o livro aqui e ali, mas nada de crítica literária, nada de resenha em revista, nada de explodir.
E mesmo assim, de vez em quando, ela sorria sozinha, olhando pro teto, imaginando:
Será que alguém achou o cheque?
Será que alguém leu o livro?
Talvez — pensava — sua maior obra nem fosse o livro.
Mas o cheque dentro do livro.
Aquele gesto bobo e gigante que lhe ruborizava o rosto.
Seu pequeno segredo literário.
E quanto mais os anos passavam, mais a autora se encantava com o fato de não saber.
Era um “cheque de Schrödinger”: enquanto o livro estivesse fechado, o cheque estava simultaneamente encontrado e perdido, salvando alguém e também empurrando contas atrasadas para o mês seguinte.
Só abrir o livro colapsaria a magia.
E aí entra minha dúvida:
será que eu realmente li isso em algum lugar?
Ou… eu criei essa história?
É minha?
E se eu colocar isso em um livro meu?
E no futuro alguém lê, esquece que leu, e também passa a vida achando que criou essa história do “cheque de Schrödinger”?
Literatura é isso: um eco que vai e volta e às vezes a gente acha que é a nossa voz, mas é de outra pessoa; ou o contrário.
E se um dia eu publicar meu livro, já digo logo: não terei dinheiro pra esconder cheque dentro dele.
Mas vai custar nada abrir e folhear pra conferir.
E quem sabe ler uma ou duas páginas também. Milagre maior do que cheque.
O Cheque de Schrödinger - Arth Silva - 19/11/2025


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